CONFERÊNCIA DE APRESENTAÇÃO DO DNE

António Nóvoa1

Agradeço o convite para intervir nesta sessão e procurarei dar um primeiro contributo, ainda que imperfeito (e provisório), para o Debate Nacional sobre a Educação2. Começarei por uma referência geracional, na linha do que foi sugerido pelo Presidente da Assembleia da República na sua alocução inicial.

Quando eu nasci, há 51 anos, a escolaridade obrigatória terminava na terceira classe. Décadas de atraso em relação à Europa. Em 1964, esta obrigação tinha aumentado para seis anos. Depois, um longo interregno.

Quando o meu filho nasceu, há 21 anos, tudo continuava na mesma. Décadas de atraso em relação à Europa. A Lei de Bases do Sistema Educativo, de 1986, colocou esta obrigação em nove anos. Releiam-se os debates da época. A ambição parecia excessiva para um país que sempre se contentara com uma “escola mínima”, com níveis baixíssimos de qualificação académica e profissional.

Nos últimos vinte anos, a generalização de uma educação básica de nove anos pode ser contada como uma história de sucesso, como uma “herança” de que nos podemos orgulhar como acaba de recordar o Primeiro-Ministro. Mas, recentemente, descobrimos a reduzida percentagem de jovens que termina o 12.º ano de escolaridade. Novos indicadores estatísticos, produzidos pela OCDE e pela União Europeia, deixam-nos inquietos e preocupados. Não espanta, por isso, que o actual Governo tenha anunciado como objectivo “a obrigatoriedade de formação profissional ou de frequência escolar até aos 18 anos”3.

Quero chamar a atenção, com estas breves referências, para a profunda insatisfação que se instalou na sociedade portuguesa no que se refere aos índices de insucesso e de abandono escolar, ou à saída prematura

1

Universidade de Lisboa.

2

O texto transcreve a intervenção feita na Assembleia da República, em 22 de Maio de 2006, guardando, por isso, as marcas da oralidade. Apenas se acrescentam algumas notas simples para esclarecimento de certas posições ou para identificação de documentos citados.

3

Intervenção do Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior na Assembleia da República, em 21 de Março de 2005.

do sistema educativo sem qualquer qualificação. O país sente-se muito frágil na comparação com os seus parceiros europeus.

Mas esta insatisfação “quantitativa”, chamemos-lhe assim, desdobra-se numa outra, “qualitativa”, relacionada com os fracos resultados escolares dos alunos. Uma série de estudos internacionais, fortemente inspirados por comparatistas e investigadores da educação, divulgaram, nos últimos anos, “listas” que situam os nossos alunos nos últimos lugares.

Portugal tinha a ilusão de estar a fazer um esforço importante na área da Educação. De repente, tanto os indicadores quantitativos, como os qualitativos explicavam-nos, com a força dos números, que continuávamos no mesmo lugar de sempre, aquele lugar que a nossa literatura designou por “cauda da Europa”.

Será que não houve melhorias? Claro que houve, mas a nossa “posição relativa” não se alterou desde o final do século XIX4. Peço desculpa por falar com esta frontalidade. Talvez não seja a melhor maneira de iniciar um debate sobre o futuro da Educação. Eu sei que é duro, mas precisamos de nos olhar no “espelho do passado”, de um passado ainda tão presente.

E porquê? São muitas as razões de uma história longa, que não é possível resumir em poucas palavras. Do ponto de vista da educação, sempre fomos o sul do sul. Olhámos para a escola, melhor dizendo, para a cultura escolar com reserva e desconfiança. Cultivámos, e praticámos, uma visão de nós mesmos que nos situa do lado da inventividade, do engenho e da astúcia, da esperteza, até do génio. Mas “O mundo que o português

É fácil verificar a afirmação através da consulta de algumas séries documentais que, desde o final do século XIX, procuram estabelecer estatísticas comparadas em educação: Bulletin de l’Institut International de Statistique, a partir de 1886; alguns relatórios de referência, como, por exemplo, o documento sobre a instrução primária apresentado por Ferdinand Buisson, na Exposição Universal de Filadélfia, em 1876, ou a obra de Émile Levasseur sobre o ensino primário nos países civilizados, 1897-1903; Educational Yearbook of the International Institute of Teachers College (desde 1924) e The Year Book of Education (desde 1932); Annuaire International d’Éducation et d’Enseignement, publicado pelo Bureau International d’Éducation, a partir de 1933; os volumes de L’éducation dans le monde, produzidos pela Unesco a partir de 1955. Nas últimas décadas, a identificação das séries é mais fácil, com base nos dados recolhidos e divulgados pela Unesco, pela OCDE e por diversas instâncias da União Europeia.

criou”, para lembrar Gilberto Freire, revelou-se avesso a um esforço de continuidade, de persistência, a uma “pedagogia do trabalho”5.

Este Debate pode ser, assim o desejo, o início de um processo de reconciliação da nossa cultura com a cultura escolar. É importante que ele se construa como um debate informado (não apenas de especialistas, mas de todas as pessoas e instituições). Um debate aberto e transparente, que não se limite a ser um receptáculo de queixas e lamentações, mas que procure dar um rumo, um sentido positivo, à nossa insatisfação. Um debate que nos coloque perante um dever de coerência, designadamente no que diz respeito a uma exigência de resultados por parte da escola. Não vale a pena uma permanente indignação caso ela não se traduza em acção decidida e constante. Um exemplo? Aqui fica, descrito a traços largos.

Durante décadas e décadas e décadas, Portugal foi o país da Europa que menos investiu em educação. Mesmo depois de Abril, estivemos sempre abaixo da média europeia. Recentemente, entre 1997/1998 e 2002/2003, num período curto de 4 ou 5 anos, fizemos um esforço um pouco maior. Um indicador, apenas um – a despesa pública em educação estimada em percentagem do PIB – subiu acima da média europeia (o que não espanta tendo em conta que o nosso PIB é muito baixo!) e logo se generalizou a ideia de que estávamos a gastar de mais.

Não se consultou a página anterior dos mesmos relatórios (aí se verificando que a despesa média por aluno continua a ser das mais baixas da Europa) ou a página seguinte (aí se constatando que o total da despesa em educação, e não apenas da “despesa pública”, estimada em percentagem do PIB não ultrapassa a média europeia). Publicou-se apenas, e repetidamente,

Gilberto Freire, O mundo que o português criou, Lisboa, Livros do Brasil, 1940. Aproveito o prefácio de António Sérgio à 1.ª edição portuguesa para recordar a pergunta “terrível” que ele nos deixa a propósito da plasticidade, da índole e da psicologia do Português: “Como se vê, o conjunto destas perguntas vem a disparar na seguinte: admitido o plástico do carácter da Grei – determinante do êxito que ela alcançou no Brasil – não nos releva abster-nos, por isso mesmo, de buscar a causa do seu insucesso na Europa em qualidades intrínsecas do Português?” (1940, pp. 15-16). A pergunta merece ser colocada e discutida a partir da “pedagogia do trabalho”, sempre reclamada por António Sérgio.

a mesma página com o objectivo de criar um ambiente social desfavorável ao investimento público em educação6.

Trago-vos esta ideia apenas como um exemplo. Porque em educação é impossível colher aquilo que não se semeia. Quem está disposto a bater-se pela escola? Quem acredita na importância da cultura escolar (literária, artística, científica), de uma cultura que é feita de trabalho, de persistência, de continuidade, de justiça, de diálogo?

Para mim, é este o sentido do debate que a Assembleia e o Conselho Nacional de Educação decidiram levar a cabo. Talvez tivesse preferido, não

o escondo, que ele fosse mais centrado sobre a Escola, sobre a cultura escolar. Receio que o tema “Educação” seja demasiado vasto. Mas estou certo de que os membros da Comissão saberão enquadrá-lo com grande discernimento.

Não me ficaria bem, iniciar um debate apresentando soluções. Tentarei, sim, avançar questões que me parecem importantes. Organizei-as em quatro pontos – as missões, os alunos, as escolas, os professores – com os seguintes títulos:

  1. À escola o que é da escola, à sociedade o que é da sociedade.
  2. Assegurar que todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso.
  3. A liberdade de organizar escolas diferentes.
  4. Reforçar a formação dos professores e a sua profissionalidade.

Não é este o lugar apropriado para uma análise detalhada desta questão, a partir de dados fornecidos pelas grandes agências internacionais. Basta, no entanto, uma simples consulta aos documentos produzidos pela União Europeia no quadro do Programa Educação & Formação 2010, designadamente pelo grupo de trabalho “Making the best use of resources”, para verificar que apenas a Grécia tem uma despesa média por aluno inferior a Portugal e que a despesa total em educação, estimada em percentagem do PIB, nos situa (mas apenas nos últimos anos) na média europeia.

1. À escola o que é da escola, à sociedade o que é da sociedade

O meu primeiro ponto intitula-se “À escola o que é da escola, à sociedade o que é da sociedade”. Ao longo do século XX, fomos atribuindo cada vez mais missões à escola e esta deixou-se inebriar por solicitações que, aparentemente, a dignificavam na sua missão. Não tenho tempo para descrever este processo a que tenho chamado o “transbordamento” da escola7. Mas deixo-vos um apontamento incompleto, escrito depois de uma leitura rápida dos últimos meses do Diário das Sessões desta Assembleia.

Aqui se referiu o papel da Escola:

na educação ambiental e, em particular, no que diz respeito às questões do mar e da protecção das florestas;
na protecção civil e na segurança, ensinando as crianças a lidarem com o risco e com situações de emergência;
na preservação do património cultural, dos monumentos, das tradições e das culturas locais;
na educação para a saúde, nas suas múltiplas vertentes, desde a saúde oral até ao combate às epidemias e, em particular, à gripe das aves;
na prevenção da toxicodependência e do tabagismo, bem como na promoção de comportamentos saudáveis;
na educação alimentar e numa correcta aprendizagem de hábitos de consumo, aos mais diversos níveis;
na educação sexual, combatendo assim um dos dramas maiores da sociedade portuguesa, sobretudo nos meios mais pobres;
na prevenção dos acidentes, através de uma cuidadosa educação rodoviária.

Referiu-se ainda que a escola não pode alhear-se de um conjunto de “cuidados” a prestar às crianças e chamou-se a atenção para o seu papel no combate aos maus-tratos, aos abusos sexuais e à violência no seio da família.

7 Ver António Nóvoa, Evidentemente – Histórias da educação, Porto, Edições ASA, 2005.

Falou-se na educação para a cidadania, na promoção dos valores, na prevenção da delinquência juvenil e na criação de ambientes sociais e familiares seguros. E na necessidade de assegurar o “pleno desenvolvimento físico, intelectual, cívico e moral dos alunos”.

E, como não podia deixar de ser, aqui se referiu a importância das necessidades educativas especiais, aqui se insistiu na aprendizagem das novas tecnologias e na aquisição de “competências de empregabilidade”, etc. etc. etc.8

Tudo isto apenas nos últimos meses de debates nesta Câmara. E tudo isto é justo e acertado. E tudo isto merece ponderação. E nenhum de nós se atreveria a excluir uma única destas tarefas da lista de tarefas da Escola. Mas será que ela pode fazer tudo isto, para além daquela que é a sua missão primordial? A minha resposta é não. A escola está esmagada, sufocada, por um excesso de missões.

Importa, pois, recentrá-la nas actividades especificamente escolares, o que obriga, por outro lado, ao reforço de um espaço público de educação, no qual as famílias, em primeiro lugar, mas também as empresas, as igrejas, as associações, os centros de saúde ou as autarquias, entre tantas outras entidades, assumam as suas próprias responsabilidades.

Eu sei que, em certos meios, esta evolução é difícil e a escola não pode abdicar da sua acção social. Mas não quero ver no meu país o que acontece noutros países: uma escola que é essencialmente um “centro social” nos meios mais pobres e uma outra centrada na aprendizagem nos meios mais favorecidos9. Em nome da democratização estaríamos a tornar os frágeis ainda mais frágeis.

8

A consulta foi feita a partir do Diário da Assembleia da República Electrónico (www.parlamento.pt). Como é evidente, se tivesse utilizado outra “fonte”, por exemplo a imprensa, as referências à missão da escola seriam ainda mais abundantes.

9

Retomo aqui, brevemente, as conclusões de um estudo da OCDE, sob a coordenação de David Istance, “Six scenarios for the future of the school”, que foram apresentadas durante a 50.ª sessão do Conselho do Bureau International d’Éducation, em Genève, 2003 (ver Pierre Luisoni, David Istance & Walo Hutmacher, “L’école de demain : quel avenir pour nos écoles ?”, Perspectives, vol. XXXIV, n.º 2, 2004, pp. 27-43 ; Bureau international d’éducation, “Scénarios pour l’éducation du XXIe siècle : résumé d’un dialogue inachevé et interrogations quant à sa continuité”, Perspectives, vol. XXXIV, n.º 2, 2004, pp. 45-63). Os autores identificaram seis tendências, verificando que as duas principais são “A escola no centro da colectividade” (que remete para uma visão

E, no entanto, mesmo aqueles que, como eu, defendem um retraimento escolar (por contraponto a este transbordamento) não têm a tarefa facilitada na definição das prioridades10. Há quanto tempo repetimos, em Portugal e no resto do mundo, que os currículos e os programas são demasiado extensos? Mas todos os dias lá colocamos uma nova disciplina, um novo conteúdo programático, uma nova competência. E depois… os professores que resolvam o problema como puderem.

A escola é criticada (e bem) por causa dos maus resultados dos alunos, nomeadamente em disciplinas nucleares. Mas é também criticada (e igualmente bem) por não preparar as novas gerações para a sociedade do conhecimento, para as novas tecnologias, para a inovação. No seu discurso de tomada de posse, o Presidente da República afirmou que a escola, mais do que ensinar, deve ensinar a aprender, acrescentando mesmo que mais decisivo ainda era “aprender a empreender”11. Não é um dilema fácil de resolver, pois é preciso estabelecer prioridades e não basta dizer que tudo é importante12. Estamos preparados para o enfrentar? Ou é mais fácil enviar

transbordante) e “A escola como organização centrada na aprendizagem” (que remete para uma visão mais contida das missões da escola).

10 Se a expressão “transbordamento” traduz bem o meu pensamento, já a ideia de “retraimento” não me satisfaz, pois pode prestar-se a equívocos. A “escola mínima” salazarista era, ao mesmo tempo, uma “escola transbordante”, como se percebe pela importância da Mocidade Portuguesa, da Religião e Moral ou da doutrinação política. Ao defender uma “escola retraída”, escusado será dizer, não pretendo fechar a escola à sociedade. De maneira nenhuma. E não tenho qualquer dúvida quanto à capacidade de muitos professores para construírem uma formação escolar que seja, ao mesmo tempo, uma formação humana, cívica, pessoal, social. Mas a escola actual, que tem raízes históricas muito profundas, por um lado, na educação religiosa, sempre portadora de uma visão integral da formação, e, por outro lado, na escola laica republicana, na sua dimensão de formação cívica, necessita de ser repensada à luz das realidades do século XXI. Estou bem consciente da impopularidade da minha proposta junto de religiosos e de laicos, pedagogos ou anti-pedagogos, pois todos construíram a sua visão de escola a partir do conceito abrangente de “educação integral”.

11 Discurso de Cavaco Silva na tomada de posse como Presidente da República, 9 de Março de 2006: “No mundo em que vivemos é preciso que a escola mais do que ensinar ensine a aprender. Mais ainda, é decisivo aprender a empreender”. A ideologia do “aprender a aprender” data do final do século XIX e, contrariamente ao que tem sido dito e repetido, é elaborada mais nos círculos da psicologia e da economia do que nos espaços da pedagogia.

12 O debate sobre o “utilitarismo”, que vem desde o século XIX, por exemplo com a crítica forte às “lições de coisas”, revela um outro dilema muito interessante entre uma escola que ensina a “cultura clássica”, tal como ela se define numa determinada época, e uma escola aberta às “culturas populares”. Em Portugal, esta controvérsia reacendeu-se no final dos anos sessenta, devido à expansão do sistema de ensino. Disso nos dá conta Maria Filomena Mónica, num artigo de 1970, no qual se interroga sobre a importância de abrir a escola não só à “cultura escolar” mas também à “cultura de massa”, perguntando se não “será realmente possível (e desejável) ensinar,

tudo para dentro da Escola e, depois, culpar quem lá está pelo “desastre da educação”?

2. Assegurar que todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso

A frase que escolhi para o segundo ponto – “Assegurar que todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso” – constituiu o leitmotiv do relatório final apresentado pela Comissão que organizou, em França, o Debate Nacional sobre o Futuro da Escola13. Ela resulta de uma dupla convicção, se não mesmo de uma dupla necessidade: por um lado, a necessidade de assegurar uma escolaridade longa a todos os alunos, condição, como já se viu, de uma participação na “sociedade do conhecimento”; por outro lado, e daí o verdadeiramente, que tal não se traduza numa mera frequência da escola sem que sejam atingidos os níveis mínimos de aprendizagem e de sucesso.

A frase tornou-se uma preocupação das políticas educativas em todo o mundo. Nos Estados Unidos da América, em 2001, a reforma conservadora assumiu como grande objectivo que “nenhuma criança ficasse para trás” (No child left behind). Em Espanha, as políticas socialistas têm insistido numa “Escola pública de qualidade que promova o sucesso de todos”. Mas, em Portugal, há ainda ideias retrógradas que consideram um absurdo defender o sucesso de todos os alunos, pois o insucesso faria parte das regras do sistema e muitas crianças deveriam ter apenas um “sucesso parcial”14.

Assegurar que todas as crianças tenham verdadeiramente sucesso implica três orientações centrais.

Em primeiro lugar, valorizar o trabalho escolar, recentrando os nossos esforços na aprendizagem dos alunos. A escola não está ao serviço de um

paralelamente aos programas clássicos, Aznavour ou Halliday, o Paris Match ou o Ben-Hur?” (Filomena Pinto Coelho, “Os adolescentes e os tempos livres”, Boletim Bibliográfico e Informativo, Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 12, 1970, p. 114).

13 Ver o site deste Debate (www.debatnational.education.fr).

14 “Sucesso parcial” é um eufemismo para dizer que muitas crianças estão, naturalmente, condenadas a um destino de insucesso (Nuno Crato, O eduquês em discurso directo, Lisboa, Gradiva, 2006,

p. 42).

projecto de ocupação, de guarda ou de entretenimento das crianças. Está ao serviço de um projecto de aprendizagem. Mas isso não quer dizer, para recorrer às palavras de Luc Ferry, que alunos diferentes não possam chegar, a ritmos diferentes, à mesma meta15.

A segunda ideia parece muito simples, mas encerra uma das mais ricas filosofias pedagógicas. As palavras de António Sérgio são esclarecedoras quando refere a necessidade de satisfazer os interesses dos alunos “com esforço próprio e a maior liberdade que for possível”. E acrescenta: “Acentuamos a palavra esforço, para que se não confunda a nossa afirmação com a ideia, que julgamos errónea, de tornar o estudo interessante, tornando-o fácil, divertido, sem esforço. Toda a educação deve ser esforçada; porém de esforço natural e voluntário, exigido por um interesse do discípulo e não do professor”16. Insista-se neste ponto: não é possível gostar de xadrez sem conhecer as regras básicas do xadrez. E o mesmo se aplica à música, e ao bailado, e, claro está, à escrita, à matemática ou à filosofia. O trabalho mais importante do professor é ser capaz de “introduzir” os alunos num mundo novo que eles desconhecem e do qual só podem gostar depois de o conhecerem.

Mas nada disto nos resolve o problema, cada vez mais agudo, dos alunos que não querem aprender, daqueles para quem a escola não tem sentido e que são causadores de grande parte das perturbações nas nossas escolas17. Podemos limitar-nos a constatar o seu fracasso, mas esta é a mais

15 Entrevista de Claude Allègre e Luc Ferry ao L’Express, a 13 de Março de 2003. 16 António Sérgio, Educação cívica, Lisboa, Ministério da Educação, 1984, p. 91 (a primeira edição desta obra é de 1915).

17 Há muito tempo que a esmagadora maioria das perturbações graves à vida escolar é causada por uma minoria de alunos para a qual o trabalho escolar não tem qualquer sentido (nem pessoal, nem social, nem cultural). A escola tem-se revelado incapaz de lidar com estes alunos que, através de formas diversas de violência, a atingem no seu ponto mais sensível. De um modo geral, os professores sabem resolver os problemas de indisciplina, que, apesar das suas manifestações mais ou menos críticas, não traduzem uma recusa da escola por parte dos alunos. Pelo contrário, não sabem o que fazer perante situações de violência de jovens que recusam, pura e simplesmente, qualquer intenção de escolarização e, muito menos, de aprendizagem. É por isso que o debate não pode ser travado com generalizações absurdas, que confundem em vez de esclarecerem. Claro que

o mais fácil seria expulsar estes alunos da escola, lançando-os num qualquer sub-mundo ou transformando-os em mais uma população errante. Mas se a escola serve para alguma coisa é, certamente, para lutar contra a barbárie da acção, da omissão ou do pensamento. Se há uma batalha

hipócrita das políticas. O grande desafio da pedagogia, dos melhores professores, é conquistar estes alunos para o esforço da aprendizagem, para

o trabalho escolar. E, para isso, é preciso que eles compreendam que a escola deve estar atenta à sociedade, mas não a deve imitar18. São outras as nossas regras e as nossas obrigações. A ideia de contrato educativo, que me parece útil recuperar, é talvez a melhor estratégia para reinstituir um sentido para a escola, sobretudo nos meios sociais mais difíceis.

Parece simples o que acabo de mencionar, mas aqui reside, provavelmente, o “segredo” para grande parte das transformações que julgo necessárias.

3. A liberdade de organizar escolas diferentes

A minha terceira interrogação – “A liberdade de organizar escolas diferentes” – é talvez a que comporta uma dimensão ideológica e política mais marcada. Julgo, por isso, que é útil clarificar a minha própria posição neste debate, para que não haja equívocos. Para mim, a escola é um bem público, é o lugar da diversidade. Julgo que estamos a assistir nos últimos anos a uma fortíssima tendência comunitarista que conduziria, no limite, a que cada grupo tivesse a sua própria escola. Estas escolas seriam, certamente, mais coerentes (do ponto de vista de uma determinada visão do mundo) e até, talvez, mais eficazes (do ponto de vista das aprendizagens).

a travar – no plano político, pedagógico e profissional – ela define-se na construção de estratégias que permitam conquistar estes alunos para a cultura escolar.

18 A ideia de que a escola deve aproximar-se o mais possível da vida e da sociedade tem conduzido a desvios indesejáveis. É evidente que a escola não pode deixar de estar atenta às realidades sociais e culturais, mas isso não significa que ela deva reproduzir, no seu seio, os comportamentos exteriores. Bem pelo contrário, em muitos casos a escola deve ser capaz de fazer o contrário do que faz a sociedade. Num tempo de apelos fortes à actividade, por vezes mesmo à agitação, a escola deve cultivar a serenidade, o silêncio, a meditação. Uma das minhas frases preferidas pertence a Gaston Bachelard quando refere que a escola deve substituir o “aborrecimento de viver” pela “alegria de pensar”. Dito de forma mais crua: deve substituir o “aborrecimento” das ocupações quotidianas, à primeira vista divertidas e atraentes, mas inevitavelmente inscritas num processo de monotonia (jogos, vídeos, sms, etc.), pela “alegria” do conhecimento, da leitura e do diálogo.

Mas seriam um factor de divisão, de separação, num tempo em que precisamos de reforçar as nossas redes sociais e o diálogo entre culturas19.

Dito isto, com toda a frontalidade, não devemos ignorar que o sistema escolar português é excessivamente rígido e uniforme. Os dispositivos burocráticos prevalecem sobre as lógicas educativas e pedagógicas. Parece-me, pois, essencial evoluir no sentido de uma maior liberdade e diversidade. Falarei apenas de três aspectos.

Em primeiro lugar, a liberdade de escolha das escolas, dentro do espaço público da educação. Para que esta escolha se torne efectiva, é necessário que haja mais informação disponível e, sobretudo, que haja “escolas diferentes”20. Felizmente, há já alguns exemplos notáveis em Portugal, a começar pela Escola da Ponte. Romper com a uniformidade e com a rigidez parece-me ser um caminho útil para repensar o funcionamento das escolas no nosso país.

Em segundo lugar, uma maior diversidade de percursos. O objectivo que vos expus no ponto anterior – Assegurar que todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso – só é viável no quadro de uma diferenciação pedagógica e escolar. Devemos fixar os “alicerces comuns”21 que constituem a referência de aprendizagem para todos os alunos. Mas, depois, temos de construir soluções diferenciadas e não podemos continuar a trabalhar para esse “aluno médio”, que é uma pura ilusão, arrastando milhares de alunos para um destino de insucesso e impedindo muitos outros de desenvolverem as suas vocações em determinadas áreas (artísticas, científicas, desportivas, etc.). Neste contexto, impõe-se sublinhar a importância dos dispositivos de orientação dos estudos e do desenvolvimento das carreiras.

19 Ver, a este propósito, António Nóvoa, “O espaço público da educação: imagens, narrativas e

dilemas”, in Espaços de educação, Tempos de formação, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

2002, pp. 237-263. 20 Há catorze anos, em 1992, publiquei um livro no qual se defendia, preto no branco, uma rigorosa

avaliação das escolas e dos professores, no quadro de uma concepção de escola como organização

que deve prestar contas do seu trabalho e de um reforço da cultura profissional dos professores

(As organizações escolares em análise, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992). 21 Estou aqui a referir-me, de novo, ao debate francês e à noção de “socle commun” que suscitou

inúmeras polémicas e controvérsias.

Em terceiro lugar, uma maior diferenciação de vias de ensino e de formação, após a escolaridade obrigatória. Uma série de estudos recentes revelam, com abundante volume de informação, que os países mais desenvolvidos evoluíram para um alargamento das vias tecnológicas e profissionalizantes22. Pelo contrário, os países mais pobres consolidaram sistemas unificados, que são, obviamente, muito mais baratos. Portugal é um bom “estudo de caso”, pois a rigidez do sistema escolar levou ao desenvolvimento de um conjunto de experiências de sucesso, desde as Escolas Profissionais até aos cursos de Aprendizagem e de Educação/Formação. É evidente que estes modelos têm custos muito elevados e condições de funcionamento que não existem na grande maioria das escolas secundárias. Mas esta é uma opção que o país tem de fazer se quiser, a par da formação escolar, valorizar a formação profissional dos seus jovens.

4. Reforçar a formação dos professores e a sua profissionalidade

A intervenção já vai longa, mas não gostaria de terminar sem uma referência à necessidade de “Reforçar a formação dos professores e a sua profissionalidade”. Procurarei ser breve e conciso.

Todos sabemos que não há nada, absolutamente nada, que substitua um bom professor. O seu exemplo, a sua inspiração, acompanham-nos pela vida fora. Da existência de bons professores, e do seu prestígio, depende, e muito, o futuro das nossas escolas.

Três aspectos merecem uma atenção especial.

Em primeiro lugar, o reforço dos programas de formação de professores, pois o que parece desenhar-se no quadro do Processo de Bolonha suscita sérias inquietações. As escolas de formação estão, hoje, numa situação de grande fragilidade e não se vislumbra qualquer saída.

22 São estudos ainda em fase de publicação final, de Aaron Benavot, de Julia Resnik e de David Kamens, entre outros, que foram objecto de uma primeira apresentação no seminário internacional que precedeu a 47.ª Conferência Internacional de Educação: “Une éducation de qualité pour tous les jeunes: défis, tendances et priorités” (Genève, 2004).

Portugal tem de decidir se quer, ou não, apostar seriamente na qualificação dos seus professores. E isso implica um reforço dos conhecimentos disciplinares, mas também a aquisição de uma cultura profissional, no quadro de uma relação próxima com as realidades escolares concretas.

Por outro lado, todos sabemos que os primeiros anos de vida docente são os mais decisivos. Devíamos proteger e enquadrar os nossos jovens professores, introduzindo-os pouco a pouco nas rotinas da profissão. Mas, em vez disso, eles são enviados para as escolas mais difíceis, para as turmas mais difíceis, nas condições mais difíceis. É dramático o que se passa com muitos professores nesta fase de inserção na profissão e na escola.

Diga-se, por último, que a nova profissionalidade exige o reforço das equipas pedagógicas. Temos professores excepcionais, mas que não desempenham, muitas vezes, o papel de liderança que deveriam desempenhar no seio das escolas. Não estou a falar dos problemas da gestão, mas sim das lideranças profissionais no quadro de um trabalho cooperativo. Veja-se o exemplo do Movimento da Escola Moderna e a forma inteligente como os seus membros asseguram a socialização profissional, a partilha e a reflexão no seio de equipas de professores.

Este caminho exige uma grande coragem e determinação dos professores, exige também modos menos centralistas de controlo da sua actividade e exige, sobretudo, uma avaliação e uma prestação de contas que dêem maior credibilidade e reconhecimento público ao seu trabalho. Que ninguém duvide: o que decide o futuro de muitas crianças e de muitos jovens não são as leis, nem os programas, são, sim, os bons professores. O reforço do seu prestígio e da sua cultura profissional são determinantes para qualquer programa de melhoria da escola.

Tantos assuntos que ficaram por abordar. Observo agora que, desrespeitando o meu anúncio inicial, acabei por “interrogar menos” e por “afirmar mais”. Peço-vos que não tomem estas palavras como certezas, mas sim como desejos de alguém que gosta da Escola, da cultura escolar, e que pretende contribuir para melhorar a educação nos próximos anos.

E isso não se fará sem um debate franco e aberto, um debate informado, que evite as armadilhas do pensamento óbvio. Não devemos

ceder ao espírito do tempo, mais propício ao gesto fácil e ignorante do que à opinião justa e informada. Devemos, sim, obrigar-nos a um esforço de razão e de lucidez.

Seremos capazes? Seremos capazes de escapar às acusações inúteis de um “tempo detergente”, de passa-culpas e de lava-culpas, centrando-nos (concentrando-nos) num esforço concreto de transformação da realidade escolar?

Todos estamos convocados para o debate. Ninguém pode ser dispensado. Porque cada palavra, cada opinião, pode ajudar a construir o futuro presente, não o futuro distante, aquele que nunca chega, mas sim a acção presente, efectiva, concreta. É esta “acção” que deve sair do Debate que agora se inicia.